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A Filosofia no Ensino Secundário

Novidades editoriais de interesse para estudantes e professores de Filosofia.

A Filosofia no Ensino Secundário

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Modelos para adorar deuses

Um dos aspectos fundamentais na filosofia, mas que ainda levanta sérias confusões, prende-se com os argumentos de autoridade. Um argumento é de autoridade quando a autoridade é invocada para argumentar em favor de uma tese. Assim, se eu disser que “Cristiano Ronaldo disse que existem mais estrelas no universo que grãos de areia nas praias todas do planeta” ninguém se vai deixar persuadir por este argumento, uma vez que o Cristiano Ronaldo não é uma autoridade em astrofísica. Mas se eu disser que “Carl Sagan diz que existem mais estrelas no universo do que grãos de areia nas praias todas do planeta”, é perfeitamente aceitável que nos deixemos persuadir pelo argumento, uma vez que Carl Sagan é um astrofísico conceituado e reconhecido pelos seus pares.
Rolando Almeida

Em filosofia existe a tendência para que o mesmo aconteça, com efeito, tal não deve acontecer em filosofia, pela razão que a filosofia não pode funcionar com argumentos de autoridade, ao contrário da astrofísica, que pode. Claro está que existe sempre uma margem de erro quando, na ciência, usamos um argumento de autoridade. Mas o facto é que a maior parte das coisas que sabemos, sabemo-las por autoridade. A maior parte de nós sabe que a terra é redonda por autoridade. Mesmo as imagens de satélite poderiam ter sido alteradas para nos fazer crer que a terra é redonda. A diferença é que podemos recorrer aos cálculos matemáticos e da física que a astrofísica implica e, tal como Sagan e os outros cientistas, provar por nós mesmos que a terra é redonda. Quando estamos perante essa evidência seria uma grande tolice querer argumentar que a terra é quadrada. Na filosofia nada disto se passa. Por mais que Descartes se tenha esforçado para demonstrar que Deus existe, podemos sempre argumentar em desfavor da existência de deus, analisando criticamente os argumentos usados por Descartes. E esta possibilidade existe precisamente porque a filosofia é sempre um estudo a priori, pelo que não depende da experiência para se provar. Pelo exposto se depreende que a atitude esperada na filosofia será aquela em que a discussão existe de forma livre mas sustentada. Acontece que, mesmo na filosofia, o recurso à autoridade costuma acontecer. Assim, invoca-se com frequência o filósofo X e Y, puxando pela erudição, para dizer que o melhor é pensar X ou Y. claro que é significativo, mesmo em filosofia, recorrer aos filósofos quando esses nos apresentam as melhores razões, os argumentos mais cogentes. Mas ainda assim, estamos claramente no terreno da discussão e incorre-se na falácia de apelo a autoridade quando queremos que o filósofo encerre a capacidade do outro argumentar. Assim, quando, em filosofia, dizemos que os argumentos X são assim porque o filósofo X assim o disse, estamos a incorrer na falácia do apelo à autoridade. Muitas das vezes, como recordo de ter lido em Sobre a Liberdade de Stuart Mill, mesmo tratando-se de uma verdade, quando essa é repetida por tradição e acriticamente, deixa de ter o peso e o valor da verdade, para passar a soar como uma ideia cristalizada. E este erro em filosofia deve ser sempre evitado.
O exemplo que acabo de dar é compensador se queremos compreender como são usados os argumentos de autoridade. Acabei de recordar uma ideia de uma obra de Stuart Mill, mas não referi que é assim porque Stuart Mill o disse, até porque Stuart Mill se pode ter enganado. Vejamos: por muito que eu tenha gostado de ler o livro citado de Mill, será que uma verdade, mesmo cristalizada, não poderá, muitas vezes, segundo o princípio da utilidade do próprio Mill, garantir o maior bem para o maior número de pessoas? Claro que a minha observação não contraria em nada o que pensa Stuart Mill. Como sabemos é da maior utilidade para todos a busca da verdade e Mill traça o percurso que a verdade faz com a liberdade, mas esta pequena passagem ilustra bem que podemos incorrer na falácia do apelo à autoridade mesmo de forma não deliberada. Esta falácia é mais fácil de desmascarar quando o argumento de autoridade é usado de forma ostensiva, tal como, “Se o filósofo X afirmou que qualquer um é filósofo, então é porque é verdade”. É fácil de desmascarar porque somos perfeitamente capazes, com algum conhecimento da história da filosofia, de dar inúmeros contra exemplos. Mas mais importante é pensarmos se é realmente assim e contra argumentarmos.
Existem muitas formas escondidas para adorar deuses. Uma delas, muito subtil, é pensarmos que o filósofo X ou Y encerrou tudo o que havia para dizer sobre os problemas da filosofia e anunciar a morte da mesma. Por muito que um orgasmo possa preencher de prazer um ser humano, não devemos pensar que será o último ou o único do universo. A bem da espécie.


 

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Blog de divulgação da filosofia e do seu ensino no sistema de ensino português. O blog pretende constituir uma pequena introdução à filosofia e aos seus problemas, divulgando livros e iniciativas relacionadas com a filosofia e recorrendo a uma linguagem pouco técnica, simples e despretensiosa mas rigorosa.

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