É a Formiga Z filósofa?
Rolando Almeida
Por hábito não exibo filmes nas aulas de filosofia, mas, quem sabe, não me escapava um filme que tivesse relevância filosófica, ao levantar tão bem os problemas, mostrando-os de forma problemática e discutível, como por exemplo, acontece na primeira saga do Matrix (Warner, 1999). Bem, quando saí da casa do amigo, a minha esposa, cuja formação académica anda algo distante da reflexão filosófica, questionou-me: “já vi esse filme no cinema assim que saiu e não entendo o que é que possa ter a ver com a filosofia”. Poderia ter-lhe oferecido daquelas respostas muito típicas e tópicas que aparecem nos manuais e que muitas vezes resultam das aulas de filosofia, “a filosofia tem a ver com tudo, com a totalidade do real”. A experiência mostra-me que as pessoas, regra geral, não se satisfazem com este tipo de respostas. O raciocínio mostra-me, sem grande esforço, que este tipo de respostas são absolutamente imbecis e em nada dignificam a filosofia. De repente uma pessoa pode pôr-se a pensar que a filosofia tem tanto a ver com as batatas que estou a preparar para o jantar, como com o novo telemóvel que comprei. Porque, afinal, tem a ver com tudo o que existe de real, com a totalidade do real. Neste sentido é pois verdade que a filosofia tem a ver com a formiga Z, com as consolas de jogos e com os iogurtes de banana. Ok! Obrigado professor de filosofia. Agora sei que a filosofia é uma grande treta. Tem a ver com tudo, é radical e tudo. Basta-me ver a Formiga Z e já estou mesmo a ver com toda a nitidez os grandes problemas filosóficos.
Como comecei a ver a história da formiguinha herói um pouco tarde, a minha esposa acabou por adormecer. Mas eu vi o filme até ao fim, até porque é um filme muito simpático e doutrinário q.b. Hoje mesmo, pela manhã, a minha esposa questionando-me sobre se tinha visto o filme até ao fim, mostrou curiosidade em saber o que raio tinha a ver o filme com a filosofia? Tive de lhe responder que ela tinha feito um bom reparo, que o filme não tem nada a ver com os principais e mais gerais problemas da filosofia (quanto mais com os mais específicos, a menos que alguém se revele capaz de estudar o Dasein na colónia de formiguinhas do filme). Mas a minha esposa, que até nem é de filosofia, questionou-me qual a razão de um manual recomendar um filme que não tem nada a ver com a filosofia? Pois é! É mesmo muito difícil explicar tudo num minuto. Lá teria de explicar uma série de problemas complicados:
1º o que permite o sistema educativo baseado no eduquês.
2º a forma como se concebem manuais escolares.
3º a própria má concepção do que possa ser a filosofia, que por aí anda.
Neste sentido é bem verdade que o filme levanta uma série de problemas, mas não problemas filosóficos.
Mas, voltando ao filme. Vamos lá tentar perceber o que é o que o filme tem a ver com os problemas da filosofia. No referido manual, é exposta a ficha técnica do filme e dá-se uma explicação que tem tanto de breve como de confusa e vaga, de que podemos reflectir a partir do visionamento de um quadro, uma música, peça de teatro, etc… não esqueçamos que se está a escrever e comunicar com jovens de 15 anos (o manual é para o 10º ano). Diz-se que, através do visionamento do filme vamos simultaneamente:
“ aprofundar a nossa compreensão da natureza da filosofia” (p.30)
“Fazer a iniciação do trabalho filosófico, treinando a metodologia” (p.30)
Garanto que a única coisa que o filme me despertou foi:
- A voz fantástica e sui generis de Woody Allen na Formiga Z;
- Dançar o «Guantanamera, Maria Guantanemera».
Pelo filme não aprofundei a minha visão da filosofia, nem me iniciei no trabalho filosófico. Isso faço-o com os textos filosóficos e com os seus problemas. Para que preciso da formiga Z? Mas tenho de confessar que não descarto a possibilidade de se aprender muita filosofia com o Gato Fedorento. Pelo menos a reflectir sobre a postura que às vezes mantemos sobre o mundo, os outros, nós mesmos e a educação que proporcionamos aos nossos jovens. Talvez seja por essa razão que em Portugal se fazem manuais escolares de filosofia que mais se assemelham a livros de poesia (má poesia, por sinal) e listas de referências de melhores filmes, melhores livros de literatura, melhores pintores, associações de defesa disto e daquilo, etc… tenho visto coisas de arrepiar. E o pior de tudo é que estas listas aparecem onde deviam aparecer os problemas da filosofia. Imagine lá o leitor que abria um livro de Física e via que os autores sugerem que se veja o filme x para ver como as coisas às vezes caem, que é para se iniciar no estudo da lei da gravidade, mas ao mesmo tempo não lhe mostra qualquer calculo que indique e prove o que se está a dizer? Pois este absurdo acontece nos livros de filosofia para o ensino secundário. Qualquer pai sério, se abrir determinados manuais de filosofia do secundário, ficará abismado com o que o filho anda (ou não anda) a estudar. Tudo isto a somar com o que de pouco filosófico ainda aparece, numa boa parte das vezes, aparece com erros e resta então perguntar se não vale mesmo a pena acabar com a disciplina de uma vez por todas?
Mas voltando à simpática formiga filósofa. O mais hilariante de tudo é o guião proposto pelos autores do manual que, resumidamente, nos dá estas indicações:
“1- prestar atenção às características da Formiga Z:
- atitude perante a vida (acomodado/satisfeito/conformado/revoltado/submisso/irreverente/inseguro)”
Mais à frente, pede para:
“2. Caracterização do general Mandible (se é honesto, ambicioso, etc….) (…)
5. qual o significado da afirmação da AntZ no final do filme: «encontrei o meu lugar. É exactamente o mesmo. Mas desta vez fui eu que escolhi».
E passa-se à leitura filosófica do filme (dizem os autores do manual):
“a) identificar o tema;
b) identificar o problema;
c) identificar a tese ou teses do autor” (que autor, pergunto eu? Que teses?)
“d) identificar os argumentos em confronto” (que argumentos, pergunto eu???)
Mas o mais interessante está para vir, quando, no ponto b) (p.31), os autores abordam o problema do filme. Repare-se:
“Podemos formular vários problemas:
- o problema da possibilidade do indivíduo transformar a sociedade” (nota minha: e este é um problema da filosofia? Ou da sociologia?)
“- o problema da liberdade individual
- o problema da relação indivíduo / sociedade
- o problema da guerra e da paz”
O que é que há de interessante nisto? É que o único indício de problema filosófico que o filme pode apresentar, os autores do manual nem sequer referem, que é precisamente o problema filosófico do sentido da vida. Claro que os autores poderiam justificar-se com aquilo que referi no início deste texto, que perguntar pela relação entre o indivíduo e a sociedade é perguntar pelo sentido da vida, etc… mas nesse caso estaríamos de novo num terreno que é muito escorregadio para aprender filosofia, que aquele onde o vale tudo é a regra dominante. Isto é pura invenção do que é a filosofia. E a minha esposa tem razão na sua inquietação. O filme nem levanta problemas filosóficos nem é possível aprender filosofia com o visionamento deste filme. Com tanta preocupação no tempo que um professor tem disponível para cumprir o programa da disciplina, ganha o professor que pura e simplesmente ignora a sugestão do manual. Ela é uma pura perda de tempo para a disciplina e não exige nem treino intelectual nem o que quer que seja que se pareça com a filosofia. E o mais interessante é que este é o tipo de exercícios proposto no manual de filosofia mais adoptado no país.
De salientar que a proposta de exploração do filme aparece em opção.
O manual referido é o Pensar Azul (Texto Editores, 2007)