E isto continua igual. Não fui eu quem o disse! Foi o Eça.
Eça de Queiroz
De sorte que, para mim, todos os justos, bem como todos os heróis, só em França se produziam na perfeição, como os espargos, nessa França donde tudo o que é amável vinha, donde eu mesmo viera, como outras crianças, num açafate de alfazema e cravo. Depois, comecei a subir o duro calvário dos Preparatórios: e desde logo a coisa importante para o Estado foi que eu soubesse bem francês. Decerto. O Estado ensinava-me outras disciplinas , entre as quais duas, horrendas e grotescas, que se chamavam, se bem recordo, a Lógica e a Retórica. Uma era destinada a que eu soubesse bem pensar, e a outra, correlativamente, que eu soubesse bem escrever. Eu tinha então doze anos. Para eu saber pensar, o Estado e os seus professores forçavam-me a decorar diariamente laudas de definições, de fórmulas misteriosas, que continham a essência, o segredo das coisas, complicadas do francês, de velhos compêndios de Escolástica. Era terrível! (…) Mas bem depressa compreendi que esta Lógica, com a divertida, faceta, incomparável Retórica, que tive de decorar durante um ano, eram decerto disciplinas em que o Estado não tinha interesse que eu fosse perfeito. O seu desejo estava todo em que eu soubesse bem francês. (…) E, sobre a mesa de pinho azul dos meus companheiros de casa, só se apinhavam livros franceses de matemática, de cirurgia, de física, de química, de teologia, de zoologia, de botânica. Tudo francês! Algumas lições eram dadas em francês , por lentes pré-claros, carregados de condecorações, que pronunciavam il faut – ile faúte. Aquele corpo docente nunca tivera bastante actividade intelectual para fazer os seus próprios compêndios. E todavia Coimbra fervilhava de lentes que decerto tinham ócios. Havia-os no meu tempo inumeráveis, moços e vetustos, ajanotados e sórdidos, castos e debochados, e todos decerto tinham ócios; mas empregavam-nos na política, no amanho das suas terras, no bilhar, na doçura da família, no trabalho de dominar pelo terror o pobre académico encolhido na sua batina, e o saber necessário para confeccionar a sua sebenta, iam buscá-lo todos os meses aos livreiros da calçada, que o recebiam de França, encaixotado, pelo paquete do Havre.
Eça de Queiroz, «O Francesismo», Obras Completas, Vol. 2, Lello & Irmão Editores, p. 813,816