Implante que o artista Stelarc fez de uma orelha no braço
Soube pela leitura dos jornais on line que a PSP de Braga devolveu os livros apreendidos que falei no post anterior. Segundo a polícia, «Tendo-se verificado que o livro reproduz uma obra de arte e não havendo fundamento para a respectiva apreensão, foi determinado o envio de uma comunicação, ao Ministério Público, para considerar sem efeito o respectivo auto». Vamos imaginar que eu estava presente na feira do livro e montava uma barraca na qual instalava materiais de clínica médica. Aí, sob o efeito de anestesias locais, resolvia auto operar-me em pequenas cirurgias. Perante o choque era preso pela polícia. Mas, já na prisão, alegava que se tratava de uma obra de arte. Deveria ou não a polícia soltar-me? O artista e performer Stelarc procede nas suas instalações a mutações no próprio corpo. Uma das suas mais recentes investidas consistiu em adaptar uma orelha no seu braço. É considerada uma obra de arte, ainda que marginal para muitos críticos de arte. Vamos imaginar que em vez de uma orelha, Stelarc tinha adaptado um pénis. Deveria ser proibido de exibir publicamente a sua arte? Temos boas razões para pensar que a exibição pública de um pénis é menos artístico e mais pornográfico que a exibição pública de uma orelha?
Os casos menos convencionais na arte são sempre chocantes e motivo de muita discussão. O livro de Nigel Warburton, o que é arte, Bizâncio, abre uma discussão intensa sobre este problema. A história da arte está cheia de imagens choque e muitas delas passam a ser moda passado algum tempo. De resto, pintar o nú feminino nem sequer é o mais chocante na história da arte. No caso da música os exemplos de arte extravagante abundam, mas estou a recordar-me do compositor contemporâneo norte americano Harry Partch que compunha a partir dos utensílios que usava na sua profissão, agricultor. Podia dar aqui dezenas de outros bons exemplos.
Mas se aceitamos sem reservas o quadro de Coubert, o que é que nos fará rejeitar uma foto do órgão sexual feminino, por exemplo? E se for um corpo no museu de cera completamente nú, há razões para o aceitar como obra de arte?
É muito difícil responder a problemas com esta natureza, com efeito fica-se com uma sensação estranha quando perguntamos: O que teria passado pela cabeça dos polícias de Braga para acreditar que não pode existir ofensa no quadro pois trata-se de uma obra de arte e não de pornografia? Sendo obra de arte deixa de ser pornográfica? E será que aos agentes policiais devemos exigir uma sólida formação artística para distinguir o que é uma obra de arte e uma obra de pornografia? Já que as questões vem em avalanche, só mais uma para finalizar: e por que razão uma obra pornográfica não pode ser uma obra de arte?
Claro que aqui só levanto questões relacionadas com a definição que possamos ter de arte. A discussão vai mais além do problema da definição da arte, já que está aqui implicado um problema de liberdade de expressão.
O quadro de Gustave Courbet encontra-se exposto no Museu D'Orsay em Paris
O recente episódio da apreensão de livros com o quadro de Gustav Coubert na capa, pela parte da PSP de Braga suscita muitas questões. As que directamente podem ser pensáveis pela filosofia tentam responder aos problemas: O que é a arte? O quadro em causa é moralmente errado? Até que ponto deve a autoridade do estado decidir sobre as liberdades das pessoas? Que dizer, por exemplo, da moralidade da obra de Spencer Tunick que consiste em fotografias de centenas de corpos completamente nus fotografados em cenários naturais ou preparados? Que dizer de obras da literatura tão radicais como As onze mil vergas de Apollinaire ou Sexus Nexus, Plexus de Henry Miller? Será que devemos censurar a exibição pública do espectáculo dos La Fura Dels Baus, XXX? Qual a fronteira entre a representação da obra de arte e a ofensa moral? Não tenho respostas finais a todos estes problemas, mas parece-me que a decisão da PSP foi errada e viola determinados princípios que garantem a liberdade das pessoas, ainda por cima tratando-se de um universo artístico devidamente contextualizado.
Em relação ainda ao comentário do Vitor Guerreiro no post anterior, temos também a hipótese de que nem todas as pessoas são ser humanos. Se partilhamos uma série de características com os macacos, elefantes, etc. que fazem de nós, seres humanos, pessoas, que razões temos para não os considerar de igual modo pessoas, merecendo igual tratamento? Pelo menos estou a pensar nas definições de pessoa mais clássicas. Por exemplo, John Locke pensava que Pessoa é ter consciência de si. Ora, os macacos tem consciência de si, logo, segundo esta definição, são pessoas. Esta hipótese é claramente inspirada no controverso filósofo Peter Singer e apresento-a aqui numa versão muito simplificada, mas que coloca já o problema.
A tese que o leitor e amigo Vitor Guerreiro defendeu nos comentários está tão bem argumentada, que acho que vale a pena partilhá-la num post. Aqui vai:
Gastamos mais recursos vegetais para produzir um quilo de carne do que se consumíssemos directamente esses recursos vegetais. E a produção de muitos recursos vegetais que se gastam na produção de carne implicam devastação florestal e outras consequências. Por isso é falacioso pensar que deixar de comer carne ia provocar uma escassez de alimentos. Na verdade é o contrário. A produção industrial de carne é um processo lucrativo mas ecologicamente dispendioso, onde gastamos mais recursos para produzir um produto muito menor. Ou bem que os animais têm importância moral ou não têm. Se têm, é ridículo dizer que não faz mal matar mas que já é muito mau matar cruelmente. É como ter dois donos de escravos a discutir, porque um deles gosta de violar as escravas e o outro fica escandalizado com isso. Vejamos: o pudor do outro em violar as escravas é indício de que ele pensa que elas são pessoas e que são moralmente importantes porque capazes de sofrer. Mas então este argumento impede-o, de todo em todo, de ter escravos. Assim, o dono de escravos humanista é um hipócrita de pior calibre do que o dono de escravos cruel, que é um nojo de ser humano mas é mais coerente logicamente. Temos de nos decidir. Ou sim ou sopas. Se ficamos todos melindrados com a morte cruel é porque pensamos que os animais são moralmente importantes. Mas se são, então deixemos de ser como o dono de escravo que "trata bem" os seus escravos, mas não abdica de fazer deles meios para os seus fins. A definição básica de tratar imoralmente alguém é tratá-lo como meio para os nossos fins. A crueldade é apenas uma extensão disso e não algo de natureza diferente. O argumento que afirma que se não fosse a pecuária algumas espécies deixariam de existir é idiota, porque nenhum de nós concordaria com uma civilização de extraterrestres que criasse seres humanos para os torturar e comer, sob o pretexto de que se não o fizessem, haveria muito menos seres humanos no universo ou nenhuns. Seria preferível não nascer do que existir continuamente numa unidade extraterrestre de produção de carne humana e ter uma vida superlativamente degradada, dolorosa e curta.
Não acredito que seja imoral comer carne em quaisquer circunstâncias, por exemplo, em muitas partes do mundo as pessoas não têm alternativas a uma dieta saudável se não comerem carne. Mas nas cidades do ocidente as pessoas têm alternativas. Só não têm se apesar dos argumentos querem continuar a agir da mesma maneira. Quer dizer, se não querem abdicar simplesmente do prazer de comer carne. A ideia de que é tolo deixar de comer carne porque os animais comem é autoderrotante, vejamos: muitos comportamentos socialmente destrutivos e imorais têm uma base ou explicação natural, isso não significa que tenham justificação moral. Assim, não é pelo facto de alguns animais comerem as crias ou de o comportamento do violador ter uma explicação biológica ou neurológica que automaticamente passa a ser moral matar e violar. Nós temos a capacidade de raciocinar moralmente e isso impoe-nos escolhas morais. Podemos e´querer evitar essas escolhas morais e continuar a fazer o que íamos fazer de qualquer maneira. Mas então temos de ser honestos e dizer apenas que não nos apetece pensar nisso, e não fingir que temos uma justificação moral para o fazer. Quanto à questão dos animais domésticos, pode haver as seguintes alternativas: a) produzir comida para animais de estimação com os ingredientes necessários, mas sem carne, tal como nós próprios comemos alimentos com aditivos proteicos, por exemplo. Se isto for "veterinariamente" viável. b) deixar de ter animais de estimação, de todo.
A revista de filosofia Crítica abriu uma secção nova para a colecção de filosofia dirigida por Pedro Galvão. Esta colecção é um caso isolado no nosso país já que se trata de colectâneas de textos sobre as principais áreas da filosofia contemporânea. Estão já publicados 2 volumes, o primeiro reunindo textos centrais sobre o aborto, editado pelo próprio Galvão e um outro editado por Carmo D`Orey sobre a filosofia da arte. Nestes dois volumes temos textos centrais que sintetizam o que de melhor se faz nestas áreas hoje em dia. O próximo volume a ser publicado é editado por Desidério Murcho e é sobre o sentido da vida. Ainda não conheço o volume, mas deixo aqui a capa para abrir o apetite, de resto, uma das capas de livros de filosofia mais interessantes que tenho visto.
Um dos comportamentos que observei muitas vezes ao longo da minha carreira profissional é que os professores mais ou menos acatavam as ordens do ministério, ainda que resmunguem sempre que exista alguma reforma. Têm razão já que as reformas em educação são mais que as mães. O que há de estranhar nisto é que uma boa parte das decisões do ministério mereciam forte contestação dos professores e das plataformas que os defendem, os sindicatos, como por exemplo, o estrangulamento dos programas de ensino, o fim de exames nacionais, o medíocre ensino da música, etc. É verdade que os exames nacionais lançaram algum barulho nalgumas ocasiões, mas foram mais pelos resultados e quando estes não eram desejáveis. Tais contestações vinham dos pais e não dos professores ou dos sindicatos de professores. São duas ou três gerações seguidas a acatar ordens do ministério que dão cabo do sistema educativo, que degradam a qualidade do ensino e das aulas. Mas nunca vi uma só manifestação por causa disso. Vi sim, alguns encontros, palestras, etc. mas que nunca tiveram eco para além de alguns docentes efectivamente preocupados com as más decisões ministeriais.
Mais uma vez corre na imprensa portuguesa o problema da falta de médicos em Portugal. Mas como compreender esta falta se em quase todas as áreas de mercado para licenciados o mercado está cheio (veja-se o ensino, por exemplo)? Qual a razão que condiciona o liberalismo no ensino da medicina o que contraria a tendência em todas as outras áreas? Escrevi sobre este problema há algum tempo atrás. Exija-se mais condições e médias mais baixas para entrada nos cursos de medicina. Clicar aqui para aceder a esses textos.
Por estas bandas pouco sabemos destas coisas, sendo que a filosofia da matemática é coisa que está entregue às mãos de dois ou três especialistas e é conhecimento ausente da maioria. Até do meu. Talvez algum editor possa ler este meu apelo e, quem sabe, ficar emocionado. A edição é de 2009.
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Blog de divulgação da filosofia e do seu ensino no sistema de ensino português. O blog pretende constituir uma pequena introdução à filosofia e aos seus problemas, divulgando livros e iniciativas relacionadas com a filosofia e recorrendo a uma linguagem pouco técnica, simples e despretensiosa mas rigorosa.